Por: Flavia Melissa |
P: “Flavia, percebo que existe uma “obrigação” para perdoar as pessoas. Temos que perdoar, pois esse sentimento é um “veneno” para nós mesmos. É o que eu sempre escuto e leio. Mas o que fazer quando a pessoa não faz questão de ser perdoada? Alguém te magoa muito e simplesmente não demonstra se importar, e muito menos faz questão de receber o seu perdão. E pior, quando é alguém que você precisa conviver diariamente!”.
R: Quando recebo uma pergunta como a sua, vejo o quão profundamente temos enraizado em nós este sistema de crenças que nos coloca sempre em uma posição de “ter que” um monte de coisas. Na semana passada respondi uma pergunta de teor semelhante, e vou reescrever aqui um parágrafo que explica com bastante franqueza e transparência o que penso sobre toda e qualquer obrigatoriedade:
Em primeiro lugar, você não “tem que” nada.Você não tem obrigação nenhuma nesta vida. Você não precisa de nada. Ou melhor, precisa: você precisa respirar, comer, beber, dormir e fazer as suas necessidades – números 1 e 2. É disso que você precisa. Você não precisa de mais nada, todo o resto é escolha. Então, quando você diz que “temos que perdoar” pois este sentimento é um veneno para nós mesmos, eu te digo que nós não temos que perdoar. Perdoar é uma escolha.
O perdão não tem absolutamente NADA a ver com obrigação. Tem a ver com opção: posso continuar aqui, neste mesmo lugar em que estou, sentindo este monte de coisas pelo outro ou posso simplesmente compreender que o outro é o outro e enxerga as coisas de um modo absolutamente único e individual, e que não tem obrigação nenhuma de querer ser perdoada ou de qualquer outra coisa que, em nosso ponto de vista, deveria querer. Então vamos, antes de mais nada, tirar completamente o perdão do campo da obrigatoriedade, porque não existe arma nenhuma apontada para cabeça nenhuma obrigando quem quer que seja a nada.
Avançando nesta ideia: toda escolha leva em consideração uma balancinha custo x benefício – o que eu ganho estando onde estou e o que perco, ou o que ganho abandonando esta posição e o que deixo de ganhar. Esta balancinha acontece em toda e qualquer situação, estejamos conscientes disso ou não. Na grande maioria das vezes não nos damos conta de que esta balancinha existe mas, em tese, nada nos impede de continuar nutrindo ódio, raiva, tristeza, inconformismo ou qualquer outro sentimento negativo por outra pessoa – ainda que estejamos nos envenenando. Nos envenenar é uma escolha, e o fazemos inconscientemente N vezes ao dia, sempre que olhamos para o outro colocando nele a responsabilidade por sentirmos o que sentimos. O veneno é injetado em nossa corrente sanguínea sempre que não nos apropriamos de nossas próprias vidas e colocamos o outro como senhor de nossas emoções – sempre que nos colocamos na posição de escravos e, o outro, na posição de nosso “dono”.
Perdoa-se não porque o outro merece ser perdoado, mas porque nós não queremos mais ser escravos do que um dia nos fizeram. Perdoa-se não porque o outro queira ser perdoado, e sim porque nós não merecemos seguir pela vida carregando um saquinho de mágoas. Perdoa-se não porque o outro tenha feito algo que nos justifique absolvê-lo de seu “erro”, e sim porque existe mais paz ao perdoar, porque gasta-se muita energia alimentando o Ego de ter sido ofendido. Porque, de fato, a única coisa que alimenta a mágoa, a raiva e o ressentimento é o Ego ferido. “Como assim o outro ousa fazer o que bem entende sem pensar em mim? Como assim o outro ousa colocar os próprios interesses acima dos meus? Como assim o outro se atreve a não fazer de mim prioridade em detrimento de si mesmo?” – como se isso não fosse egoísmo, achar que o jeito com que o outro elege seus próprios interesses e prioridades seria melhor escolhido por mim do que por si mesmo!
Pausa para respirar: todos nós fazemos isso o tempo todo. Todos nós temos opiniões e julgamentos e críticas que ocorrem de modo mais ou menos automático sem nem ao menos nos darmos conta disso. E está tudo bem em ser assim, isto tudo é produto do funcionamento da mente e acontece deste jeito mesmo, pois somos humanos e nossa mente humana tem como “efeito colateral” os pensamentos. Mas pensar é apenas um comportamento da mente, assim como bater é um comportamento do coração e excretar é um comportamento do intestino. E nossa sociedade fez de nós seres humanos tão identificados com esta atividade mental que, automaticamente e sem nem ao menos percebermos, pegamos nossos pensamentos e fazemos dele nossa identidade. Quando olhamos para a vida bem-sucedida de alguém e nos sentimos mal porque o mesmo não acontece conosco não pensamos “puxa vida, estou tendo um pensamento de inveja”, e sim “que horror, como sou invejoso e por isso vou arder no mármore do inferno!”. Quando nos lembramos de algo que o outro fez e que nos deixou triste não pensamos, “olhe só, minha mente está me trazendo um pensamento referente ao passado”, e sim “desgraçado, como ele pôde ter feito isso comigo?”. Vamos cair na real: ninguém faz nada COMIGO. As pessoas VIVEM e, em alguns momentos, por causa de expectativas que EU construí baseado no que EU faria se a situação fosse COMIGO, EU ME frustro. Tudo, tudo acontece no EU. A expectativa. A surpresa. A decepção. A mágoa. E, também, o perdão.
Perdoar é, antes de mais nada, uma renúncia à escravidão. Perdoar é, em suma, optar por não mais alimentar o ego ferido de alguém que projetou expectativas e se frustrou. Perdoar é, em última análise, abrir mão da dor. Perceba como perdoar não tem absolutamente nada a ver com o que acontece fora de mim. Note como todas as ferramentas estão em mim e no modo como eu me responsabilizo pela minha própria vida. Entende como eu nem preciso dizer ao outro que o estou perdoando?
E, por último: ninguém PRECISA conviver diariamente com ninguém. Se a sua dor é tão grande e tão profunda que você não consegue abrir mão dela, talvez precise refletir se vale a pena manter esta convivência diária. Novamente: balancinha custo x benefício. Existe um preço a ser pago, mas você pode abrir mão do que quer que seja – novamente, onde está a arma apontada para a sua cabeça? Sim, talvez seja complicado. Talvez exista um preço alto a ser pago. Talvez você precise mudar MUITO a sua vida para que esta convivência diária se interrompa ou deixe de existir. Talvez você tenha que reinventar-se por inteiro, mas se a dor é tão grande e profunda, talvez valha a pena. É possível. Talvez não seja fácil, mas é possível. Mas o que nós, seres humanos, fazemos na grande maioria das vezes é querer que o outro mude e se arrependa e se redima e que nos bajule e que se arraste a nossos pés e que se mostre muito, muito, muito grato por nosso perdão… Para que, então, nós não precisemos ter trabalho algum.
Nenhum comentário:
Postar um comentário